Vivendo em (só)ciedade

Por Rossini Gomes

– Quem vem morar com a senhora?
– Ninguém. Não preciso de acompanhante.

A resposta da senhora de 79 anos, recém-chegada ao prédio, além de ter deixado a vizinha admirada, ratifica o senso comum de que a sociedade não está acostumada a ver o outro sozinho e a acreditar que dessa forma é possível ser feliz. Ainda hoje parece difícil assimilar a grande diferença entre os termos ‘solidão’ (quando a vida impõe o afastamento ao indivíduo e este fica desolado) e ‘solitude’ (ocasião em que o isolamento foi feito por escolha pessoal). E é justamente assim, ilhadas dentro de suas respectivas casas, que vivem Martha Emília de Araújo, que deixou surpresa sua nova vizinha, e Maria dos Prazeres dos Santos, 74. Duas senhoras com histórias de vida diferentes, mas que optaram pela convivência consigo mesmas e sabem lidar muito bem com isso.

Filha de um casal que teve boa condição financeira – a mãe tinha um ateliê de moda e o pai trabalhava com pedras preciosas –, Martha diz que aprendeu a tirar proveito das coisas desde muito cedo. “Como sou filha única, me acostumei com a vida de solidão”, lembra, referindo-se aos momentos em que tinha de se divertir sozinha devido à falta de um irmão. O grande sonho da sua vida foi morar sozinha, decisão influenciada pela leitura do livro Journal of a Solitude, de May Sarton. “Conta a história de uma mulher que morou um ano sozinha para testar e ver se gostava”, resume. Mas isso foi algo que a moradora do bairro da Boa Vista, no Recife, adiou, por causa de dois casamentos e só realizou há dois anos, quando retornou dos Estados Unidos ao Brasil.

Dois momentos vividos de maneiras extremas. “Meu primeiro casamento foi muito louco, porque eu não gostava do meu esposo, mas minha mãe era autoritária e me obrigou a casar. Fiquei casada durante 22 anos, 22 anos de sofrimento”, avalia a senhora, mãe de dois filhos, convicta e já lembrando dos tempos felizes. “Já com o irlandês, não. O conheci divorciada, nos Estados Unidos, e ficamos juntos durante oito anos, até quando ele morreu, em 2002”, diz Martha, que viveu 40 anos em solo norte-americano, tem dupla nacionalidade.

A história de vida de Martha e de dona Prazeres, como é chamada Maria, se diferenciam em quase tudo: dona Prazeres teve três irmãos, sendo duas mulheres e um homem, não teve filhos e nunca casou. “Queria ter quatro filhos, dois homens e duas mulheres, mas Deus não quis, e tive quatro propostas de casamento, mas recusei todas”, afirma, sorrindo como se orgulhosa. Além disso, Martha teve uma vida financeira muito boa (“meu pai me deixou um pecúlio muito bom; nunca precisei trabalhar”), diferente de Maria.

Enquanto a primeira se preocupou em organizar a vida a fim de conhecer todos os museus do mundo e ler todos os livros que sempre quis (“eu sonhava de noite e meu pai realizava no outro dia”), a segunda trabalhou durante 39 anos e seis meses como empregada doméstica. Apesar de tanta diferença, a satisfação em morar sozinha e ter como companhia elas mesmas une essas duas senhoras. “Fico o dia todo em casa, faço minha comida e vejo TV”, diz Maria, que morou 21 anos no Rio de Janeiro. Assim que voltou, há 29 anos, passou um tempo na casa de amigos no bairro de Ponte dos Carvalhos, no Cabo de Santo Agostinho; depois, mudou-se para Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, onde já morava sozinha; por fim, foi para o Pina, no Recife, onde reside. Os primos moram na casa de baixo, mas ela prefere morar sozinha na de cima.

Quando se sentem solitárias e tristes, cada uma tem sua maneira de afastar a melancolia. “Tenho algumas poucas amigas, porque perdemos algumas com o passar dos anos, mas marcamos pelo telefone e vamos à igreja”, conta Maria. “Eu saio e converso com as pessoas. Eu sei onde encontrar”, diz Martha, que reflete e, ainda que involuntariamente, parece responder àqueles que não diferenciam ‘solidão’ de ‘solitude’: “O começo e o fim das pessoas são os mesmos, mas é no meio onde você se entretém. Passo o tempo fazendo minha própria roupa, lendo, cozinhando, assistindo… Eu gosto de estar sozinha.”

Para saber mais, leia.

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