creadores de imagenes cristianas
 

historia
 
textos
 
fotos
 
videos
 
blogs
 

 

 

 

 

 

 

 

 
historia
     
 

Dona Cristina Perdeu a Memória Trabalho apresentado na aula de Semiótica do Cinema da Especialização em Estudos Cinematográficos, da Universidade Católica de Pernambuco - Professora: Aline Grego
por Francisco de Assis Secchim Ribeiro (kiko) out. de 2008

Introdução

Esse trabalho pretende ser uma analise do curta-metragem Dona Cristina Perdeu a Memória (2002), produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, dirigida por Ana Luiza Azevedo que divide o roteiro com Jorge Furtado e Rosângela Cortinhas. Segundo a sinopse do filme, Antônio, um menino de oito anos, descobre que sua vizinha Cristina, de 80, conta histórias sempre diferentes sobre a sua vida, os nomes de seus parentes e os santos do dia. E Dona Cristina acredita que Antônio pode ajudá-la a recuperar a memória perdida1.

A análise irá mostrar que a narrativa vai muito além da simples temática sobre perda de memória. Dona Cristina perdeu o filho num acidente aéreo e agora vive num asilo, onde as pessoas dizem que ela esta perdendo a memória. Ela não acredita nisso, pois tem tudo “bem guardadinho” na sua caixa de relíquias. “Sabe?”- diz ela a Antônio – “essa gente ali onde eu moro tão dizendo que eu perdi a memória. Mas não é verdade”.

A história é contada a partir de uma série de situações e imagens que se repetem. O método de análise buscará então separar essas situações e imagens recorrentes, relacionando-as entre si, para identificar que tipo de relação elas estabelecem entre si e com o todo. Para tanto, abordagem valer-se-á de alguns elementos da sintaxe narrativa de Algirdas Greimas e seu modelo básico da estrutura actancial, onde um sujeito narrativo deseja e procura um objeto. Tanto sujeito quanto objeto fazem parte de duas redes semânticas mais desenvolvidas: o sujeito é assistido de um lado, por um coadjuvante que tem um poder de ajudar o sujeito a conquistar o objeto, mas, por outro lado tem que lutar contra um opositor que tem um poder de prejudicá-lo. O objeto se encontra entre um destinador e um destinatário. Ambos possuem um “saber” situacional e representam um eixo da comunicação. Entre eles há uma relação de implicação. Entre sujeito e objeto, uma relação de projeção e entre adjuvante e opositor uma relação de contradição (Winfried, 1996, p.157).

Trocando em miúdos

O filme começa com Antônio colocando pequenos objetos de plástico numa caminhonete de brinquedo. Depois, ele os transporta para uma caixa amarrada à carroceria de um triciclo. A cena é entrecortada por créditos iniciais formados com letras e objetos também de plástico. Tudo isso aliado à música de fundo que reforça o estado psicológico do espectador trazendo à tona memórias da sua infância.

O menino constrói uma pequena ponte sobre um buraco no quintal de sua casa com três tábuas. Ele pedala em direção à ponte, uma das tábuas se quebra e ele cai. Ao longo da história, essa imagem da queda se repete e marca diferentes momentos da narrativa.

É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem.

Antônio se levanta, e enquanto recolhe os objetos que caíram do triciclo se dá conta que há uma senhora de idade martelando tábuas do outro lado da cerca de sua casa. Ela o cumprimenta com um bom dia. Ele, ainda meio surpreso, não responde, e por isso é repreendido pela velha senhora: “Tu não sabe que a gente tem que cumprimentar as pessoas quando se encontram?” Esse encontro marca a conjunção de uma relação que amadurecerá pouco a pouco ao longo de vários dias.

De um lado da cerca, dona Cristina partilha seu saber, suas histórias, suas memórias. De acordo com o modelo básico da estrutura actancial de Greimas ela é o sujeito, mas é também o destinador que estabelece com uma relação de implicação com Antônio. Ele é o destinatário, mas é também e ao mesmo tempo, coadjuvante. Ele irá ajudar dona Cristina a conquistar o objeto de seu desejo. Ela busca interação com alguém que a possa escutar e assim ela possa superar os limites da solidão em que se encontra. No asilo onde ela mora não interage com ninguém. Ela prefere “trabalhar” na cerca, pregando e despregando tábuas todos os dias.

A relação entre os dois irá possibilitar que a velha senhora expresse seus sentimentos através de histórias verdadeiras, inventadas ou incoerentes, desabafando seu inconformismo com a limitação que a velhice lhe impõe. A perda de memória, em parte resultado da velhice e do isolamento em que ela vive mergulhada, é o vilão dessa história, ou segundo as categorias actanciais de Greimas, é o opositor que tem o poder de prejudicar o sujeito narrativo (Winfried, 1996, p.157).

A cerca não separa os dois. Ela é como que o divã de um psicanalista, onde dona Cristina todos os dias deita seu relógio para “trabalhar” esquecendo do tempo, de sua situação e de lembranças que ela prefere não lembrar. Entre uma martelada e outra, ela conta histórias e no final delas desabafa:

“Sabe, quando a gente fica velha, eles acham que a gente é abobada, eles até falam pra gente como se fosse uma criancinha: "Oi, vovozinha, como é que tu tá hoje? Tu tá com a carinha tão rosada. Chegou a fazer cocô?”

O menino ouve suas histórias, pergunta pelo significado das palavras que não entende: “O quê que é relíquia?”. Ela responde sempre num tom professoral, como uma verdadeira pedagoga. Em sua ingenuidade de criança Antônio vai ajudando dona Cristina a conquistar o objeto de seu desejo: “Se tu quiser se lembrar de alguma coisa, é só me pedir”. Ela é o sujeito narrativo que busca encontrar o sentido de sua vida na velhice e manter viva a sua memória: “Claro que essa história não é bem assim, mas é isso que eu guardo na minha memória pra não ficar muito triste”.

Oi menino... como é o seu nome?

Em três diferentes ocasiões, o menino responde para dona Cristina nome verdadeiro: “Antônio”. Perguntar o nome para ela é apenas um pretexto que começar a contar uma história: “Tu sabia que hoje é dia de Santo Antônio?” Ela então desfia um rosário de pessoas de sua família que se chamam Antônio, todos “devotos ao santo”. Já no segundo dia, são seus colegas de asilo que se chamam Antônio: “Aqui nesta casa tem muitos Antônios”. Pouco importa.

A passagem do tempo é marcada pela imagem de um pato de madeira que desce por uma tábua inclinada. Isso se repete e marca o final de cada cena. No outro dia, outras quedas se sucedem. Outros encontros. Outras histórias de dona Cristina misturando pessoas e situações. Um dia ela diz que Antônio é nome de santo, no outro que é um nome sem importância: “Antônio é um nome esquisito. Não é nome de soldado, não. Antônio tem que ser um velho dono de padaria, de armazém”.

Dia após dia, ela esquece o nome dele, que, acaba por responder que se chama Adalberto num dia, em outro Frederico. Certo dia, ele furta o relógio que ela pendurava na cerca “pra não sujar” e acontece uma disjunção, uma ruptura no relacionamento dos dois. A imagem recorrente do pato de madeira, agora um tanto quanto desfocada, marca a passagem para outro dia, mas não há mais encontro. Antônio não aparece mais no quintal, Vemos apenas dona Cristina martelando a cerca sozinha.

No dia seguinte, Antônio se esconde qual Adão no paraíso depois da desobediência. Contudo, ela o vê, o chama e relata para ele a “perda” do relógio, presente que seu filho lhe deu há muito tempo atrás. Mais uma ruptura na história. O pato desce, escorrega e cai da tábua.

No outro dia, o menino aparece puxando sua caminhonete de plástico, sem triciclo e sem queda. Ele resolve assumir sua identidade e volta a dizer seu nome verdadeiro. É o dia da troca de presentes. Antônio ganha uma tábua para consertar a ponte e dá/devolve o relógio “de presente” para dona Cristina. Ele conserta a ponte, faz outra tentativa, pedala, mas cai novamente.

A seqüência final é surpreendente. Dona Cristina parece recuperar a memória. Chama Antônio pelo nome: “Oi, Antônio! Tu hoje dormiu mais do que a cama”. Ela conserta a ponte para ele e confia a ele algumas “relíquias” que a têm ajudado a manter viva sua memória: “Eu quero que tu guardes tudo isto direitinho pra mim. Porque, sabe, se alguém vier dizer que eu perdi a memória, eu vou dizer que não”. E vai contando histórias ligadas a cada um dos objetos na medida em que os entrega para ele. Antônio passa ser o guardião das memórias dela e junta os objetos dela aos seus: “Pode deixar. Eu vou colocar num lugar bem guardadinho”. Sobe no triciclo e pela primeira vez atravessa a nova ponte sem cair. A cerca praticamente não existe, tornou-se ponte. Dona Cristina está no quintal de casa de Antônio. Dessa vez, ele atravessa a ponte pedala e dá várias voltas no círculo que simboliza a vida. A relação de amizade entre os dois avança. Dona Cristina no meio sorri e aplaude.

Conclusão

No making of, a diretora Ana Luiza revela que o filme “conta a história da relação entre duas pessoas, uma de oito, outra de oitenta anos (...) através de uma criança que tem a capacidade de ouvir, de fantasiar, de viajar nas fantasias dela, a vida dela passa a ser possível”.

Pessoas idosas lamentam esquecer fatos ocorridos uma semana antes, mas podem se lembrar de episódios ocorridos em suas infâncias, o que pode ser explicado pela carga emocional diferente em cada acontecimento: possivelmente a pessoa se lembrará com mais facilidade de fatos com forte apelo emocional. Uma outra queixa se refere à repetição da mesma história para a mesma pessoa em diferentes ocasiões, o que pode ser justificado pelo comprometimento da memória contextual: o fato é lembrado, mas não onde foi contado ou ouvido2. Fazer as mesmas perguntas repetidamente, a falta de cuidado consigo, esquecendo de tomar banho, por exemplo, são sintomas evidentes de perda de memória. Dona Cristina está perdendo a memória, mas a narrativa vai além desse enfoque. O curta conta a história de uma amizade inteiramente pura e sem preconceitos. E é exatamente essa relação que irá ajudar dona Cristina a saber lidar com a perda de memória. Na seqüência final, enquanto conserta a ponte, ela lembra do nome do menino: “Oi, Antônio, bom dia”. A partir daí partilha com ele lembranças significativas de sua vida confiando a ele suas “relíquias”. Antônio, o guardião das memórias dela oferece ajuda: “Se tu quiser se lembrar de alguma coisa, é só me pedir”. E dona Cristina emocionada responde: “Guarda bem, tá?”. O sujeito narrativo de que fala Greimas conquista seu objeto. Esse mesmo objeto é partilhado com Antônio, o destinatário da história. É exatamente esse momento de encontro, onde a cerca praticamente não existe mais e a ponte foi consertada, que permite ao menino dar voltas e mais voltas no círculo da vida carregando na bagagem suas relíquias junto com as de dona Cristina que sorri, como antes não havia feito.

Referências

NÖTH, Winfried. A semiótica no século xx. 2. ed. São Paulo: Annablume, 1999. 265 p.

Sites Consultados

CASA DE CINEMA DE POA < http://www.casacinepoa.com.br/> Acesso em 17 out. 2008

UNIFESP/EPM - Departamento de Psiquiatria <http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/atu5_01.htm> Acesso em: 27 out. 2008

 

 
 
 

ARQUIVO

Papers

Dona Cristina Perdeu a Memória
por Francico Ribeiro

Frágil
Hugo Ara