Livro perdido de Freyre traçou sociologia dos cemitérios brasileiros
 
 
Jazigos e Covas Rasas seria a continuação de Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso
 
 
Por José Heraldo e Vânia Lira
 
           
 

A o contrário do que muitos imaginam, Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Ordem e Progresso, obras do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre formam uma tetralogia. A Quarta parte, Jazigos e Covas Rasas, planejada e parcialmente elaborada pelo escritor, jamais chegou a ser editada e sequer se sabe onde se encontram os originais. Segundo a antropóloga Fátima Quintas, esta última obra restringiu-se á manuscritos que nunca chegaram ao conhecimento público. Este fato comprometeu o complemento histórico, sociológico e antropológico da visão Gilbertiana do Brasil do séculos XVI ao XIX.

Como o livro Casa Grande & Senzala destinou-se a transmitir os costumes da época da cana-de-açúcar e da escravatura, Jazigos e Covas Rasas deveria refletir uma visão social e arquitetônica dos ritos funerais desde a época do império.

O professor Edson Nery da Fonseca afirma que Gilberto Freyre foi deputado constituinte entre 1946 e 1950. Nesse período planejou escrever Jazigos e Covas Rasas. Fez pesquisas na Biblioteca e Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Freyre reuniu uma documentação que trouxe para o Recife, embrulhado em um veludo vermelho, colocando-o em estante de sua residência, de onde desapareceu.

Na opinião de Nery, a obra não chegou a ser concluída por três motivos. ”O primeiro foi o desgosto de Gilberto Freyre com o desaparecimento dos escritos; o segundo, a dispersão do autor para outros assuntos tirando seu interesse; e o terceiro é o fato de não gostar de concluir nada, a incompletude perpetuava sua obra”, revela.

A intenção de Gilberto Freyre era de que a obra fosse um estudo de ritos patriarcais, de sepultamentos e da influência de mortos sobre vivos. O grande destaque são as fases de desenvolvimento e desintegração na qual ainda se encontra a sociedade brasileira, desde o patriarcado até os dias atuais, refletidos nos enterros, covas ou jazigos familiares. Para isto o autor utilizou fontes como o livro Arquitetura dos Cemitérios Brasileiros, de Clarival do Prado Valadares, anúncios de jornais e visitas pessoais aos principais cemitérios do Recife, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais.

Gilberto concebia o homem morto, de certo, homem social. E, no caso de jazigo ou de monumento, o morto se torna expressão ou ostentação do poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família. O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos, netos, descendentes, pessoas do mesmo nome seriam, na visão de Freyre o túmulo partriarcal a perpetuação da endogomia.

Desta forma o jazigo a tornaria eterna, simbolizando uma forma de ocupação do espaço cuja arquitetura e simbologia continua, e até aperfeiçoa, a das casas-grandes e dos sobrados dos vivos, requintando-se dentro de espaços imensamente menores que os ocupados por essas casas.

O sociólogo considerava que os túmulos suntuosos seriam de conservação dispendiosa para a família, ultrapassando a capacidade econômica dos descendentes dos senhores ricos que o levantaram como descreveu em uma de suas experiências “... era um túmulo com alguma coisa de monumental levantado por uma família opulenta da época do império. Seu chefe fora ministro de Pedro II.

Abandonado, arruinado, sujo, o túmulo patriarcal abria-se naquela tarde de chuva longos anos depois de falecido o grande do império ... para receber o corpo magro e vestido simplesmente de chita branca com salpicos azuis, uma pobre velha – sua neta – cujo enterro não chegara a atrair as clássicas três pessoas necessárias para a condução decente de qualquer ataúde``.

Freyre destacou nos jazigos a forma de imagens ou figuras de dragões, leões, anjos, corujas, folhas de palmeira ou de louro santos, do próprio Cristo e da Virgem. Estes símbolos, feitos de mármore, bronze ou outros materiais nobres, guardam os jazigos privilegiados como que defendendo-os, até chegar o dia do Juízo, de ladrões, enchentes, bichos imundos e da profanação.

Analisando a sociedade pernambucana, Gilberto Freyre coloca que antigamente as pessoas do Recife chamavam o beco que ia do centro da cidade ao cemitério de Santo Amaro de “Quebra Roço“ (presunção, vaidade e orgulho).

É como o tempo age sobre as casas e os túmulos, não apenas os modestos mas também os monumentais, quebrando-lhes o roço, isto é, sua arquitetura característica – casas – grandes, sobrados e monumentos fúnebres - criações de pedra e cal, de mármore e bronze com que as famílias patriarcais ou tutelares pretenderam firmar no seu domínio não só no espaço como no tempo.

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