Carta de Pero Vaz Caminha destaca-se pela grande riqueza de detalhes
 
 
Ana Patrícia de Paula
 
           
 

Dias navegando em um mar, que mais parecia infinito. Finalmente, uma terra já conhecida à vista. E assim, nas últimas semanas de abril, Pero Vaz de Caminha descobriu o Brasil. Não houve aqui nenhum engano. O escriba da esquadra de Pedro Álvares Cabral redigiu a primeira peça literária sobre o Brasil, dando ao rei de Portugal, D. ManuelI, a notícia da descoberta. E isto se tornou a certidão de nascimento do país.

Em 27 páginas poéticas, o português renascentista traduziu e desvendou um lugar paradisíaco. A carta demonstra o fascínio de Caminha com todo aquele chão, que curiosamente chamou de sertão, com a geografia e os costumes dos primeiros habitantes. E é aqui que ele deixa claro o assombro e o encantamento com a nudez das índias. E isso não era de se estranhar, pois, na Europa, corpo rimava com pecado - até nas relações sexuais entre marido e mulher, não se tirava a roupa.

Sem a frieza de documentos oficiais, Caminha chama a atenção para este povo cujos os homens e mulheres “(...)andavam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas”. E ele pareceu não resistir a algumas comparações, nas quais as portuguesas ficam longe da exuberância das nativas: “e certo que era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que as mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como elas”.

Olhos literários - E assim descreve as características deste povo como se estivesse fazendo uma reportagem de moda para uma grande revista atual: “Muitos deles, ou quase a maior parte deles, traziam aqueles bicos de ossos nos beiços. (...) Também andavam aí uma mulher moça com um menino ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam”.

Não se pode negar que o português deu uma atenção toda especial a essa gente de “cabelos corredios” e pouco se estendeu em assuntos, como a posse da terra. Os seus olhos literários viram os índios como seres dóceis e inocentes. Segundo o professor da Universidade Federal de Pernambuco, Marcus Carvalho, 38, os nativos quando viram os primeiros navegadores também ficaram totalmente deslumbrados. “Afinal, o índio tinha que fazer seu próprio artesanato. E, quando viu aqueles homens com roupas coloridas e cheias de brilho, anéis e colares, eles se aproximaram ao invés de se afastarem por serem estranhos”.

Objetividade - Os relatos da época sobre viagens e terras recém-descobertas costumavam misturar informação com fantasia. A carta de Pero Vaz foge desta característica e torna-se um tesouro de clareza. “Mas Caminha se distancia da crítica e se aproxima da reportagem”, diz o historiador e pesquisador do período colonial, da Universidade Católica de Pernambuco, José Ernani Souto. Dragões, cobras com rostos humanos, gigantes, canibais com a cabeça embutida no ventre e sereias faziam parte dos documentários marítimos. “Todavia, Caminha ficou longe disto tudo, como se não precisasse de um reforço de imagem”, acrescenta José Ernani.

O “repórter” Caminha deixou bem claro sobre o que iria escrever, quando desembarcou em areias brasileiras: “creia bem por certo que, para alindar nem afear, não porei aqui mais o que aquilo que vi e me pareceu”. Mostrando uma sociedade que o historiador Sérgio Buarque de Holanda prefere classificar em seu livro “Visão do Paraíso” como uma característica portuguesa, em contraste com os espanhóis e os italianos.

"Entretanto, toda a objetividade deste escriba não quer dizer que ele fosse ideologicamente imparcial”, afirma José Ernani. Chega a ser explícito quando Caminha conta que os nativos assistiram a primeira missa celebrada aqui com muita devoção. Isto é até difícil de imaginar, pois não entendiam nada, com exceção do própria língua.

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Você sabia?

  • Que Caminha escreveu a carta em português renascentista e que atualmente o original é quase incompreensível? Para resolver este problema ela já foi várias vezes reescrita. A versão mais respeitada pelos historiadores é a de D. Carolina Maichaelis de Vasconcelos e Jaime Cortesão

 

  • Que a carta saiu do Brasil rumo a Portugal em 2 de Maio de 1500 no barco de mantimentos e que não há notícia de quando ela chegou em Portugal? O documento só foi encontrado quase três séculos depois, em 19 de fevereiro de 1773 por José de Seabra da Silva, guarda mor do arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa. Até hoje a carta permanece no local.

 

  • Que a carta de Caminha foi publicada pela primeira vez em 1817 pelo historiador e sacerdote Manuel Aires de Casal, que suprimiu todos os trechos que julgou eróticos?

 

  • Que Caminha conta que dois degredados foram deixados no Brasil com a missão de aprender a língua dos indígenas e levantar informações sobre riquezas, costumes e crenças da terra? Curiosamente, juntaram-se a eles, espontaneamente, mais dois tripulantes.

 

  • Que em trechos da carta, Caminha brinca com o sentido da palavra vergonha? E a usa como a genitália feminina, como pudor ou como sentimento de humilhação ou rebaixamento.
   
     
     
     
     
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