DESPEDIDA DE COMBLIN

A noite é suave, já podes desamarrar tuas sandálias e descansar teus pés andarilhos, peregrinos, pois a noite veio, Comblin. Suave e mansa a noite veio. Não amedrontou, nem assustou, ela veio serena ao teu encontro, como a brisa no Horeb, conversando contigo como a brisa e Elias.

Tuas sandálias estão cheias de pó. Das estradas do desterro, das estradas dos sertões, de Talca terra chilena, de Riobamba no Equador, dos nordestinos destinos empoeirados de caminhar, das vilas e acampamentos.

Já podes desamarrar teu cinto que te cingiu, liberar teus rins ao repouso, pois agora vais para onde não querias ir, pois por ti, ficarias mais um pouco entre os romeiros peregrinos. Desata teu cinto, desata, pois nada de prende mais entre os homens e as mulheres que não seja o Amor.

Encosta teu cajado junto aos teus livros. Já não precisarás dele, pois teus pés estão pisando nos verdes e seguros campos do Senhor. Enfrentaste com tua lucidez e tua palavra as fardas e baionetas armadas, agora já não há botas nem coturnos, nem arames farpados, nem grades nem opressão, pois o Vento campeia livre nos campos do Pastor.

A noite é suave e belas são as estrelas. Mais belas ainda o são no céu sertão desse imenso arraial chamado Brasil onde escolheste plantar teu coração. No chão de Ibiapina, de Conselheiro, de Cícero, de Austregésilo e de Helder, ah! Quanta sacralidade nesta terra ressequida, quanto adubo misterioso que a torna fértil sem se mostrar, e faz brotar vida das pedras e vocações libertárias onde grassa o espinho do xique-xique e a cerca do egoísmo.

A noite é suave e doces são os vagalumes que trazem nas mãos dos romeiros a luz roubada das estrelas, para alumiar em pequenas candeias, o caminho que vai sendo construído ao teu redor. Podes ainda ouvir os lamentos e os benditos dessas almas que agora choram tua partida, como órfãos de um pai? Podes ainda escutar-lhes as lágrimas, rutilantes, escorrendo pelos caminhos tortuosos da pele marcada pelo sol cáustico e pela dura labuta diária?

Já não tens mais sede de água, nem sede de saber, nem sede de amar, pois estás na Fonte das fontes. Não precisas mais aprender, apenas contemplar a plêiade de irmãos e irmãs que arrebanhaste, diretamente na face de cada um, transfiguradas e belas pela realidade da presença da face do Cristo.

A noite é suave, mas o dia é claro, Comblin. Dizem que os anjos podem escutar a alvorada. Talvez seja esta uma das poucas vantagens que têm sobre nós, mas os poetas e os cegos também o podem, talvez tu já soubesses disso, os teólogos podem ser como os poetas e os cegos que enxergam horizontes entre uma palavra e outra. O teólogo é um poeta de Deus.

A noite é suave Comblin, mas o dia é claro. Deixaste a nossa noite para nos esperar no Dia. Como sempre, nos emprestando luz onde só enxergamos escuridão.

Agora meu amigo e meu irmão, antes que nos sintamos órfãos, antes que nossa lágrima de saudade escorra para esta terra seca, antes que nossos pés ousem descansar, faze uma prece e acende mais uma luz para nós, essa luz do Dia, pois embora a noite possa ser suave, o dia é claro e só podemos caminhar enquanto há luz.

Assuero Gomes
Cristão da Igreja de Olinda e Recife.
Médico, casado e pai de três filhos.
Escreveu vários livros e ajudou a fundar O Dom da Partilha,
 restaurante para pessoas carentes.
Escreve no Jornal O Porta Voz.

MORREU COMBLIN

Morreu na manhã de hoje, domingo, aos 88 anos, o padre belga José Comblin, um dos mais importantes representantes da Teologia da Libertação. Ele estava na Bahia, tendo falecido devido a problemas cardíacos. Nasceu em Bruxelas, em 1923. Ordenou-se sacerdote em 1947. Doutorou-se em Teologia pela Universidade Católica de Louvain.

Trabalhou na América Latina desde 1958. Em Campinas, São Paulo, lecionou Química e Física para o curso colegial. Posteriormente foi assessor da Juventude Operária Católica, tornando-se professor da Escola Teológica dos Dominicanos em São Paulo e tendo como alunos Frei Betto e Frei Tito. Aí permaneceu até 1962. A seguir lecionou na Faculdade de Teologia do Chile até 1965. A convite de Dom Helder Câmara, veio para o Recife, onde foi professor do Instituto de Teologia – ITER, tendo oferecido cursos e assessorias também no Equador e na Bélgica. A partir de 1969 esteve à frente de seminários rurais em Pernambuco e na Paraíba.

A metodologia utilizada para os seminários era adaptada ao ambiente social dos seminaristas e essa experiência lançou as bases para a sua Teologia da Enxada. Suas idéias o colocaram sob suspeita do regime militar. Foi expulso do Brasil em 1971. Exilou-se no Chile durante 8 anos, onde também esteve à frente da criação de um seminário em Talca, em 1978. No seu livro A Ideologia da Segurança Nacional, publicado em 1977, destrinchou a doutrina que servia de base para os regimes militares na América Latina. Foi expulso por Pinochet em 1980.

Ao desembarcar no Recife, foi preso na Polícia Federal, considerado ainda “persona non grata” já em tempos de redemocratização! Desde que voltou ao Brasil, radicou-se em Serra Redonda e João Pessoa (Paraíba), e atualmente estava morando na cidade de Barra, no interior da Bahia. Nós damos testemunho da sua vida simples e comprometida com uma Igreja humilde e a serviço dos pobres. Ele foi nosso professor no ITER e também no Curso de Missiologia, em São Paulo. Sua dedicação maior sempre foi à formação de animadores de comunidades eclesiais de base, além de escrever muitos e importantes livros. Foi um profícuo e íntegro mestre do cristianismo, por quem os nossos sinos devem dobrar!

Comblin pediu para ser enterrado em Solânea, na Paraíba, o que deve ocorrer na próxima terça-feira, 15h. Nesse município está o Santuário de Santa Fé e o túmulo de outro padre santo, Ibiapina, que Comblin tinha como exemplo. No domingo que vem, dia 3, às 11h, será celebrada na Igreja das Fronteiras no Recife, onde viveu Dom Helder, uma missa especial para fazer memória agradecida pela vida do grande profeta que foi José Comblin. Será uma iniciativa conjunta do Instituto Dom Helder Câmara e do Grupo de Leigos Igreja Nova, com a participação da gente da UNICAP.

Desde 2009 Comblin vinha doando a sua biblioteca de 9 mil livros à Universidade Católica de Pernambuco, por nos considerar parceiros capazes de ajudar o povo a ter uma fé mais esclarecida. No próximo dia 25 de abril, às 14h, no bloco G4 da Católica, um pastor protestante, Paulo César Pereira, vai apresentar a sua dissertação no nosso Mestrado em Ciências da Religião, sobre a contribuição da teologia de Comblin para a evangelização das cidades – sinal dos tempos!

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