"E
o lobo comeu a ovelha sem nenhuma convalescência.”
(redação de um universitário)
Escrever não é apenas catarse para literatos, mas uma necessidade
em todos os momentos de nossa vida. O garçom escreve o pedido de seus
clientes; o médico prescreve os medicamentos ao doente; o professor
escreve e faz seus alunos escreverem; o jornalista escreve matérias
para os meios de comunicação de massa. Cada um deles usa palavras
que representam a realidade extralingüística, fazem parte do jargão
técnico das várias áreas profissionais em que se atua,
ou palavras que servem para promover a chamada coesão textual, ou seja,
que transformam uma seqüência linear de palavras em um texto coerente,
passível de ser devidamente decodificado pelo leitor a quem se destina.
Essas palavras terão sentido quando contextualizadas, isto é, fizerem parte de um texto, de uma determinada época, numa situação comunicativa específica. Assim, embora saibamos da influência da linguagem da informática sobre os usos da linguagem informal, que utilizamos cotidianamente, um escritor jamais diria que vai "printar" um livro, mas que vai imprimi-lo, publicá-lo. Isso porque é preciso que as palavras que usamos na comunicação estejam adequadas às idéias que queremos veicular, considerando-se o contexto em que se acham inseridas. É preciso observar, na redação, a adequação vocabular.
E esse é um problema que avulta entre as muitas imperfeições reacionais que se podem observar nas produções textuais apresentadas nos vestibulares (e também nos textos de muitos profissionais da escrita, como os jornalistas). A inad
equação vocabular, ou seja, a escolha inadequada da palavra para representar o que se apreende do mundo extralingüístico deve ser considerada, dada sua incidência. Além de dificultar a compreensão do texto pelo leitor, o que é mais grave, ela aponta para um texto pobre, de estilo medíocre, desacreditando seu redator.
Segundo
BECHARA (1999: 54 e 55), levando-se em conta o plano de expressão (significante
) e o plano do conteúdo (significado), o estudo dos lexemas, suas estruturas,
variedades e relações como os significantes podem abarcar, além
da lexicologia, quatro disciplinas subsidiárias: a) lexicologia da
expressão ( relações entre os vários significantes
léxicos: amar -amante; saltar -saltador ); b) lexicologia do conteúdo
( relações entre os significados léxicos: salário,
soldo, provento, honorário, mesada, ordenado. Entra aqui o estudo dos
sinônimos e dos antônimos.); c ) semasiologia ( estudo da relação
entre os dois planos, partindo da expressão para o conteúdo,
o sentido: a relação entre o significante hóspede com
os significados "aquele que dá hospedagem" e "aquele
que recebe hospedagem". É o estudo da semântica lexical.
); d ) onomasiologia ( estudo da relação dos dois planos partindo
do conteúdo: para o significado dinheiro há os significantes:
massa, tutu, prata, erva, caraminguá, arame, musgo ( quase todos populares
ou familiares ).
Há ainda disciplinas lexicográficas preocupadas com o estudo
da origem das palavras (etimologia ),
onomástica ( estudo histórico dos nomes próprios, dividido
em antropologia quando estuda os nomes de pessoas; e toponimia -quando estuda
os nomes de lugares.)
Como se pode observar, o estudo dos usos das palavras e sua adequação às idéias é complexo e, em geral, desconsiderado pela escola. Não estamos preconizando que a escola se detenha nas especificidades desse estudo, mas que se preocupe com as graves lacunas no domínio do vocabulário que acompanham o aluno ao longo do Ensino Fundamental e que chegam à universidade, tornando-se mais um dos empecilhos para que ele venha a se tornar um redator eficaz.
Quando se estuda uma língua estrangeira, há a preocupação com a aquisição do vocabulário. No caso da língua materna, aprendemos as palavras por ouvi-las, mas essa aprendizagem fica no nível do vocabulário ativo, ou seja, aquele que usamos na linguagem da comunicação diária. Quando escrevemos, entretanto, precisamos de um vocabulário mais elaborado, mais rico, mais específico. Ao conversarmos, temos a presença do receptor, que nos permite preencher determinadas lacunas de nosso conhecimento vocabular usando um recurso muito conhecido das crianças: apontar o objeto, usar palavras como: isso, aquilo, aquela coisa. Tais recursos, válidos na linguagem da comunicação diária, não são permitidos na escrita, o que geraria a vagueza, ou seja, o leitor não saberia onde "ancorar" tais palavras.
Na linguagem oral, a repetição de palavras é comum. Como exemplo, citemos o mas, o porém para apresentar oposição de idéias. Se estamos falando de idéias antitéticas, essas palavras opositivas se repetem ao longo de nosso discurso. Na escrita, deveríamos variar não só as conjunções adversativas, mas as estruturas sintáticas, usando conjunções concessivas ou orações reduzidas de gerúndio e infinitivo. Portanto, para quem escreve, o domínio do vocabulário deve ser mais amplo, sob pena de nosso texto ser considerado pobre de estilo e, algumas vezes, não sermos compreendidos pelo leitor.
É preciso não esquecer que, além do conhecimento da variedade de operadores sintáticos de que dispomos para veicular adequadamente nossas idéias, domínio necessário para quem escreve bem, deve-se dominar, pelo menos em parte, o vocabulário específico das várias áreas profissionais, se quisermos redigir com eficiência e eficácia. Quantas e quantas vezes nos deparamos com palavras cujo sentido específico nos. escapa, mas que precisamos conhecer para entender um artigo de jornal, uma notícia. É comum ouvirmos e lermos, hoje, na mídia que o Governo está preocupado com a elisão fiscal. Não se trata de sonegar impostos, de burlar o fisco, mas de aproveitar as brechas que existem na lei a fim de não pagá-los. A palavra elisão é conhecida dos estudiosos da língua como supressão de um ou mais fonemas numa palavra: cine por cinema; deste = de + este. No caso acima referido, o sentido é específico da linguagem jurídica ou do jargão da linguagem fiscal, mas de conhecimento necessário para entendermos o noticiário da atualidade.
Quais
as causas da alta incidência da inadequação vocabular
em textos de alunos que chegam à universidade? Observamos, quando trabalhamos
na capacitação de professores do primeiro grau maior e de segundo
grau, que a escola, há muito, abandonou os salutares exercícios
com o vocabulário, limitando-se o professor a fornecer ao aluno o significado
de algumas palavras que ele desconhece. Não são trabalhados
sinônimos, antônimos, famílias de palavras, campos semânticos.
Os alunos não sabem usar o dicionário. Na escola pública,
muitas vezes, ele nem sequer existe para consulta dos próprios professores,
menos ainda para os alunos. Algumas vezes, também, os textos escolhidos
pelos professores para trabalho em sala de aula são pobres de conteúdo
e de estilo, nada acrescentando ao aprendizado intelectual e lingüístico
do aluno. Conhecer novas palavras, ter um vocabulário
rico deixou de ser importante na escola.
Como se
pode enriquecer o vocabulário? Pela leitura, é a primeira resposta.
E, para isso, a variedade de tipologia textual usada em sala de aula deve
ser considerada. Afinal, como se vai conhecer o significado da palavra posologia,
se o leitor não for um curioso das bulas de
remédios?
Se a leitura é o elemento principal para a aquisição de um vocabulário rico, algumas considerações devem ser feitas. A escola, em certas ocasiões, em vez de formar um leitor, torna o aluno inimigo da leitura. Essa afirmativa não é irresponsável. O que dizer de uma escola particular, de classe média alta, que exige de um aluno que ainda não chegou à quarta série a leitura de O alienista , de Machado de Assis? Que critérios levaram o (a) professor (a) à escolha dessa obra? Não que estejamos contra Machado, mas uma criança nesse nível escolar ainda não possui a maturidade psicológica e intelectual para apreender toda a riqueza de significados e de usos da língua contidos no texto. Esse descompasso entre o nível da obra e a capacidade de compreensão do aluno vai gerar dificuldades que, naquela idade, serão intransponíveis e que trarão horror ao autor e à obra, fatores impeditivos da formação de um futuro leitor de Machado ou de outro autor de literatura. O professor terá transformado a leitura, de fruição, de gozo estético em tormento. O ato de ler deixa de ser prazer para se tornar obrigação desagradável.
Para "curar"
tal doença, poder-se-ia adotar o que, na capacitação
dos professores, costumávamos chamar de momento lúdico da leitura.
Em que consiste tal momento? E reservar, em cada aula, alguns minutos para
que o professor leia para seus alunos um texto em prosa, um poema, uma letra
de canção, um pensamento, uma fábula, enfim qualquer
texto que provoque prazer estético no leitor. A leitura deve ser expressiva,
e o aluno ouvi-Ia simplesmente pelo prazer de ouvir. É uma forma de
educar seu espírito e despertar nele o interesse pela leitura. Nada
será cobrado ao aluno para que ele desvincule a leitura de cobranças
em sala de aula, mas o professor não se omitirá de dar o significado
das palavras que considera difíceis para seus alunos.
Se houver a possibilidade, o texto será distribuído aos alunos
para que o releiam. É evidente que o autor, a obra de onde foi extraído
devem ser citados. Os alunos poderiam colaborar, trazendo para a sala de aula
um texto de sua escolha que o professor leria para os demais e seria guardado.
Ao final do ano, o professor promoveria, por votação, a escolha
dos textos que obtiveram maior aceitação dos alunos e eles seriam
publicados em um jornal mural, com o crédito da obra, do autor e do
aluno que o escolheu.
Outro
fator que contribui para que o vocabulário do aluno se torne pobre
é a presença li constante da imagem no mundo moderno. Desde
a infância, a criança está cercada por ., imagens que
transmitem informações: nos out-doors, nas indicações
de ruas, paradas de
ôníbus, nos primeiros livros de histórias, nas revistas
de histórias em quadrinhos, nos filmes !
de cinema ou de vídeo. Desde muito cedo, a transmissão de informações
via textos icônícos :'
( comunicação através de imagens) lhe é familiar.
Quando tem fome ou sede, procura com
o olhar o logotipo da Mac Donald ou da Coca- Cola. Se quer comprar algo, pede
à mãe que
entre no Bom Preço. O computador, com seus joguinhos para crianças,
só veio a enriquecer essa enorme possibilidade de leituras de imagens,
que antecede a leitura do texto escrito. Paradoxalmente, a escola ainda não
sabe aproveitar esse saber pré- existente para canalizá-
10 na alfabetização, fazendo o aluno entender que a escrita
é uma dentre várias possibilidades de comunicação
entre os homens, a mais elaborada e completa, mas que deve aproveitar o que
as demais "escritas" podem trazer de útil. Mais adiante,
nos exercícios em sala de aula, é interessante exercitar o aluno,
fazendo-o transformar um gráfico num texto escrito e vice-versa, colocá-lo
diante de uma imagem e fazer o aluno descrevê-la, aguçando sua
capacidade de observação, criar uma história sobre ela,
ou, o que é mais complexo, emitir uma opinião fundamentada sobre
o que a imagem representa. Tudo isso, de acordo com o nível de escolaridade
do aluno e aplicando os exercícios numa ordem crescente de dificuldades.
Há
ainda um outro aspecto que pode conspirar contra a aquisição
de um vocabulário rico pelo leitor: a mídia impressa ou a mídia
eletrônica. Pode parecer uma incoerência afirmar isso, mas não
o é. Expliquemo-nos: a mídia impressa utiliza, para veicular
as notícias ou reportagens, a linguagem coloquial culta, ou seja, a
linguagem que utilizamos na comunicação oral, mas respeitando-se
as regras da gramática. Trata-se, portanto, de um tipo de linguagem
que preconiza construções sintáticas simples, com frases
preferencialmente na ordem direta e com um vocabulário conhecido, de
palavras curtas. A razão de tal escolha justifica-se pela necessidade
que tem a imprensa de informar o que se passa no mundo com uma linguagem de
fácil compreensão, que seja concisa e objetiva.
Essas características apontam para o uso de um vocabulário conhecido
dos leitores, que querem saber do que está acontecendo sem precisar
recorrer ao dicionário. Se tiverem de fazê-lo, o jornalista perde
seu leitor, o que não pode e não deve acontecer. Winston Churchill,
primeiro-ministro inglês durante a Segunda Guerra Mundial, que também
era jornalista, dizia: Entre as palavras, prefiro as mais curtas. Se forem
velhas, serão ainda melhores.
Quanto à mídia eletrônica, tomemos como referência as palavras da jornalista Lilian Wite Fibbe, numa entrevista dada à Isto É. Perguntada se os veículos noticiosos eletrônicos iriam substituir os jornais impressos ( ela é a responsável pelo Jornal da Lílian, no megaportal Terra ), respondeu: "Acredito que a internet seja apenas mais uma alternativa. Ela pode abrir o apetite para o jornal impresso porque é uma mancheteira por definição, apesar de permitir que os assuntos sejam aprofundados de um site para outro. O recado dos usuários é: trate de exercer o seu poder de sintese e me contar em poucas palavras o que eu quero saber."
Concordamos
com a jornalista em alguns aspectos: de fato, os que são leitores habituais
de jornais não se contentarão em lê-los na internei, conhecendo
apenas as manchetes, irão procurar o detalhamento dos fatos nos jornais
impressos. Mas aprofundar um assunto, viajando de site para site, não
é possível. Se, como ela mesma afirma, o jornal eletrônico
é "mancheteiro", não é através dele
que as notícias serão aprofundadas.
Como dissemos anteriormente, esse tipo de jornal não irá contribuir
para aumentar o vocabulário do leitor. As manchetes, os títulos
de matérias são construí dos com palavras conhecidas
e, preferencialmente, curtas. Ali não existirão palavras que
já não sejam de domínio do leitor. O vocabulário
mais elaborado, culto ficará para uso dos que escrevem editoriais e
artigos, nem sempre lidos pela maioria dos leitores dos jornais e inexistentes
no jornal eletrônico.
Pelo exposto, veremos que o aluno, quando é leitor contumaz, não terá dificuldades para escolher palavras ao escrever. Mas aquele que não lê ou lê pouco vai apresentar em seus textos o problema da inadequação vocabular na redação, pois o menu lexical de que dispõe é pobre em opções.
Cabe, portanto, à escola promover o enriquecimento vocabular do aluno. Em se tratando de alunos da escola pública, essa necessidade é ainda maior, dado que seus usuários não possuem livros em casa, não têm acesso às bibliotecas públicas, por falta de hábito ou por inexistência delas perto de seu local de moradia, não lêem jornais ou revistas e tudo o que lhes chega do mundo é via TV, que usa sempre as mesmas palavras nos noticiários e cujos programas passam ao largo do crescimento cultural dos telespectadores.